Metodologia | Nível enunciativo
A metodologia de análise que propomos encerra-se com o estudo do nível enunciativo da imagem. Diferentemente de outras propostas metodológicas, a nossa análise põe o acento nos modos de articulação do ponto de vista. Com efeito, é frequente encontrar análises icónicas que ignoram o problema da enunciação. Qualquer fotografia, na medida em que representa uma selecção da realidade, um lugar a partir do qual se realiza a tomada fotográfica, pressupõe a existência de um olhar enunciativo. O estudo desta questão tem consequências notáveis para conhecer a ideologia implícita da imagem e a visão do mundo que transmite. Neste sentido, propõe-se um conjunto de conceitos a partir dos quais é possível reflectir, desde o ponto de vista físico, a atitude das personagens, a presença ou ausência de qualificadores ou marcas textuais, a transparência enunciativa, os mecanismos enunciativos (identificação vs. distanciamento), até ao estudo das relações intertextuais que a imagem fotográfica promove. A análise da fotografia finaliza com uma interpretação global do texto fotográfico, de carácter subjectivo, que procura a articulação dos aspectos analisados na construção de uma leitura fundamentada, assim como é o momento de realizar, se se entender oportuno, uma valorização crítica sobre a qualidade da imagem estudada.
Como já exprimimos anteriormente, sentimo-nos em dívida com os ensinamentos da semiótica textual, que tratámos de complementar com a consideração de outros aspectos como o estudo das condições de produção (instância autoral; contexto social, económico, político, cultural e estético), a tecnologia ou as condições de recepção da imagem fotográfica (onde se mostra a fotografia, a que público se dirige, etc.). Na base desta aproximação situa-se a consideração da fotografia como linguagem, desde um ponto de vista mais operativo que ontológico (Eco, 1977; Zunzunegui, 1988, 1994).
4.1 Articulaçao do ponto de vista
Ponto de vista físico
Vimos como o enquadramento de uma fotografia é o resultado da selecção de um espaço e tempo dados. Todo o enquadramento responde a um ponto de vista, corresponde a uma determinada maneira de olhar, e isso implica uma relação entre elementos materiais e imateriais, presentes e ausentes na própria representação.
A descrição do ponto de vista físico consiste no estudo dos parâmetros que regem o local de onde foi realizada a fotografia, se a fotografia é feita à altura dos olhos do sujeito fotográfico, em picado, em contra-picado, ou de outras posições. A eleição da altura da tomada, o ângulo da câmara, conota um peculiar modo de “relação de poder” entre a representação e a instância enunciativa que determina a articulação do ponto de vista.
Também é conveniente fazer referência à existência de balanceamento do enquadramento, o que constitui um modo de distorcer a representação.
Atitude das personagens
A atitude das personagens pode revelar ironia, sarcasmo, exaltação de determinados sentimentos, desafio, violência, etc., e promover no espectador certo tipo de emoções. Estas atitudes podem ser estudadas a partir do exame da encenação e da pose dos actantes da fotografia. O exame dos olhares das personagens é outro aspecto que nos pode dar bastantes pistas sobre as suas atitudes. Em certas ocasiões, estes olhares constituem uma interpelação directa ao espectador (geralmente em contra-campo), ou a outras personagens do campo visual. Por outro lado, os olhares podem dirigir-se ao fora de campo, o que sublinha a sua importância.
É óbvio que o estudo deste parâmetro não está isento da carga subjectiva do analista, já que estas atitudes podem ser amiúde muito ambíguas.
Qualificadores
Neste sub-capítulo, propõe-se o estudo dos modos de qualificação das personagens por parte da instância enunciativa. Estes qualificadores informam-nos do grau de integração do sujeito fotográfico com o seu redor, e o grau de proximidade ou afastamento que a instância enunciativa promove no espectador da fotografia.
Transparencia / sutura / verosimilhança
Já se fez referência ao facto de que, com frequência, numerosas encenações fotográficas, baseadas na concepção indicial da fotografia, seguem o princípio do apagamento das marcas enunciativas que, precisamente, salienta a sua confusão com o referente, com a própria realidade. O meio fotográfico foi classificado historicamente como uma arte menor, precisamente por ser considerado um dispositivo que não implica um trabalho sobre a forma e sobre a realidade. O sistema representacional fotográfico dominante (que poderíamos denominar “clássico”) elimina toda a marca da existência do próprio dispositivo através da sutura e apagamento de toda a pista que aponte para a existência deste. O fechamento da significação e a linearidade da leitura são outros traços característicos do modo de representação clássico, aplicáveis ao âmbito da fotografia.
Em certas ocasiões, a fractura do princípio de transparência enunciativa ou de apagamento das marcas enunciativas é conseguida mediante a presença de numerosos elementos expressivos ou de técnicas compositivas que criam uma artificialidade, pondo em cheque a verosimilitude da encenação que, por ser muito marcada, rompe a verosimilitude da representação. Muitas das fotografias analisadas (que fazem parte do banco de fotografias ITACA-UJI, e que se podem consultar em www.analisisfotografia.uji.es) são exemplos desta modalidade discursiva).
Marcas textuais
Como afirma Santos Zunzunegui, o enunciador definir-se-ia como a presença do autor no próprio texto visual, que não deve confundir-se com o autor empírico. A tensão entre linhas, dominantes cromáticas, a co-presença de centros de interesse ou focos de atenção na imagem, a tensão entre formas geométricas (triângulos-rectângulos), a presença de composições simétricas ou irregulares, a complexa organização interna da composição fotográfica, juntamente com outros elementos, são algumas marcas textuais que nos informam da presença do enunciador na imagem. Falamos, pois, de marcas que se podem reconhecer na própria morfologia da imagem, que mantêm relações de tipo indicial, icónico, simbólico ou puramente referencial.
O enunciatário é um sujeito também propriamente textual que não pode confundir-se com o receptor ou espectador físico. É através da análise que podemos reconhecer a presença de ambos. Como explica Zunzunegui (1988, pp. 82-83), “a presença do observador é reconstruível e, portanto, visível, inclusivamente nos casos em que se pretende ocultar as suas marcas, através de duas actividades discursivas essenciais”:
- a aspectualização: consiste na operação de localizar um conjunto de categorias aspectuais (acção, tempo e espaço) que revelam a presença implícita de um sujeito-observador.
- a focalização: “permite apreender mediante um ponto de vista mediador o conjunto do relato”, quer dizer, refere-se, no nosso caso, ao modo “como” é mostrado o motivo fotográfico.
Olhares das personagens
Em determinados géneros, como a fotografia social e a fotografia de imprensa, a presença do fotógrafo é sistematicamente ocultada mediante a não exibição do olhar dos personagens para a câmara. A fotografia obtida mostra uma acção, situação, relações de força, etc., que tem como efeito um maior realismo, o qual deve ser vinculado com o efeito discursivo da impressão de realidade.
O olhar para a câmarada personagem protagonista constitui uma interpelação directa, desafiante, ao espectador da imagem. Trata-se de um olhar que, em determinadas ocasiões, sublinha a presença do dispositivo técnico que torna possível a própria representação fotográfica, o que rompe o verosímil fotográfico.
Em géneros como o retrato, é habitual que a pose do sujeito fotografado inclua o olhar para a câmara.
Enunciação
A fotografia não é, pois, somente uma imagem, mas, sobretudo, o resultado de um fazer e de um saber-fazer; é um verdadeiro acto icónico, quer dizer, deve entender-se como um trabalho em acção. Neste sentido, a fotografia não pode ser separada do seu acto de enunciação. Denis Roche expressou esta ideia de um modo muito simples e directo: “o que se fotografa é a própria acção de fotografar”. Deste modo, em todo o texto visual pode-se reconhecer a marca do sujeito da enunciação ou enunciador, por definição.
Uma análise do “corte” ou selecção que o enquadramento fotográfico supõe, através do exame dos parâmetros que temos vindo a fazer nos níveis morfológico e compositivo permitir-nos-ia determinar como se concretiza esta presença do sujeito da enunciação. É possível definir duas estratégias principais na enunciação fotográfica. Por um lado, a que se serve de modelizações discursivas do realismo da encenação, de natureza fundamentalmente metonímica (sintagmática), na qual os signos fotográficos mantêm uma relação de contiguidade física com o seu referente, para a qual aponta a vocação indicial da fotografia. Por outro, a estratégia discursiva baseada em modelizações não realistas, muito mais amplas e complexas de definir, de natureza principalmente metafórica (paradigmática), na qual se estabelecem relações imaginárias entre os elementos ou signos visuais – que se podem observar no texto fotográfico – e as suas significações.
Na metáfora, a relação entre o signo e o referente não existe por continuidade, mas absolutamente livre, o que explica a virtualidade de leituras múltiplas que motivam os discursos artísticos. Reiterámos que a origem da fotografia reside na relação indicial que a imagem fotográfica mantém com o real. Schaeffer afirma que a imagem fotográfica constitui a execução de um código icónico, cujos signos possuem uma natureza muito diferente de outros meios de expressão. O matiz fundamental introduzido por Schaeffer é precisamente este: nem todos os signos icónicos funcionam do mesmo modo ou desempenham a mesma função. A imagem fotográfica é, essencialmente, para Schaeffer, um signo de recepção, o que implica a impossibilidade de a compreender nos limites de uma semiologia que, como sabemos, define o signo do ponto de vista da sua emissão.
A flexibilidade pragmática, é um dos traços essenciais da imagem fotográfica, estando aos serviço das estratégias de comunicação mais diversas que têm que ver com o estatuto mutante e múltiplo da fotografia (Schaeffer, 1990, p. 8). A identificação e o distanciamento são duas estratégias enunciativas que implicam efeitos discursivos muito diferentes no espectador. A identificação é mais frequente naquelas fotografias em que existe um predomínio do indicial, donde a impressão de realidade ser o principal efeito perseguido. A fotografia de reportagem social procura, com frequência, uma resposta emotiva do espectador, e um efeito de identificação do público. O distanciamento é um efeito discursivo que se produz, amiúde, quando o espectador está consciente da natureza convencional ou artificial da própria representação fotográfica, como acontece em algumas propostas estéticas (Duane Michals, Witkin, Mapplethorpe, entre outros).
Regressando a Schaeffer, a flexibilidade pragmática da fotografia, isto é, a condição fugidia do sentido no discurso fotográfico, daria lugar, segundo os casos, a uma ambiguidade semântica, a uma multiplicidade de leituras nas quais está implicada a subjectividade do espectador. Não obstante, isto não quer dizer que valha qualquer leitura do texto fotográfico: o exame dos dois níveis de análise anteriores, através da utilização de uma série de elementos visuais e das suas relações estruturais, permitiu-nos uma argumentação que deve ser rigorosa, partindo da materialidade do texto fotográfico.
O carácter metafórico (aberto) de numerosas propostas artísticas deve vincular-se à identificação de isotopias e de conexões de isotopias no próprio texto, como marcas da enunciação fotográfica. A isotopia poderia ser definida como um conjunto redundante de categorias figurativas/expressivas e semânticas que permite fazer uma leitura uniforme. Como assinala Greimas, na sua aplicação à análise do texto audiovisual, “o discurso poético poderia ser concebido como uma projecção de redes fémicas [unidades do plano da expressão, por oposição a “semas”, referentes a unidades sémicas], isótopas, onde se reconheceriam simetrias e assimetrias, consonâncias e dissonâncias [rimas visuais ou a sua ausência] e, finalmente, transformações significativas de conjuntos [visuais]” (p. 232).
Relações intertextuais
Sem dúvida, este conceito encerra uma complexidade da qual não é possível dar conta em poucas linhas. Em primeiro lugar, há que destacar que todo o texto, por definição, se relaciona sempre com outros textos que o precederam. O fotógrafo não pode evitar a influência da obra de outros fotógrafos, e de obras que trespassam os limites da própria fotografia, como a pintura, a banda desenhada, o cinema, o discurso televisivo, a escultura, a literatura, etc. A marca destas influências ficará registada, de forma mais ou menos visível, na própria materialidade do texto fotográfico que produza, e que se manifestam nas marcas enunciativas de que falámos antes. Em certas ocasiões, poder-se-á falar da presença ou reconhecimento de motivos iconográficos, o que supõe estabelecer uma relação entre um conceito com figuras, alegorias, representações narrativas ou ciclos, como a paixão (como motivo religioso), os anjos, o cemitério (romantismo), etc.
Deste modo, podem-se estabelecer diferenças de matiz nos modos de registar estas influências no texto fotográfico:
- A citação consiste na presença literal de uma obra de outro fotógrafo ou criador (em sentido amplo).
- A colagem é uma técnica que se baseia explicitamente no uso de fragmentos de outros textos visuais.
- O pastiche consiste em tomar determinados elementos característicos da obra de um fotógrafo, artista ou criador e combiná-los de tal maneira que dêem ao espectador a impressão de se tratar de uma criação independente.
- Finalmente, falar-se- á, de forma geral, de intertextualidade quando se detecte um jogo de relações suficientemente elaborado e trabalhado entre o texto analisado e outros textos com os quais se relacione de um modo produtivo. A competência de leitura da instância receptora é decisiva para a detecção deste tipo de relações intertextuais, cujo reconhecimento tem uma natureza subjectiva, ainda que não se deva esquecer, de novo, que não podemos perder-nos em “derivas interpretativas” que convertam a nossa análise numa leitura aberrante, carente do nível de argumentação necessário para justificar a intertextualidade presente na fotografia estudada.
Um factor determinante de relações intertextuais é a mise en abîme. Se dentro da fotografia se reproduz um quadro ou outra representação de qualquer tipo, sendo parte ou todo do conjunto, encontramo-nos ante uma experiência de intertextualidade por vezes não evidente, mas sempre factual.
Em alguns casos, a ironia e o humor são efeitos que se conseguem mediante a utilização destas técnicas de construção discursiva, sempre presentes, de uma forma ou de outra, em qualquer texto fotográfico.
Esta série de conceitos foi estudada por diferentes autores como Roland Barthes, Julia Kristeva ou Mikäil Bakhtine.
Outros
Este espaço fica reservado à inclusão de outros conceitos que possam estar relacionados com o nível interpretativo da análise fotográfica. Permanece aberto ad libitum ao analista ou estudioso da imagem.
Comentários
No termo do exame dos distintos conceitos que enformam o estudo da articulação do ponto de vista, é conveniente realizar uma síntese dos aspectos mais relevantes. Pôde-se constatar que a maioria dos parâmetros considerados neste nível interpretativo de análise estão intimamente relacionados, ao ponto de resultar muito difícil defini-los de forma independente.
Recordemos que a utilização do formato de tabela para a apresentação da presente proposta de análise da imagem fotográfica é motivada pela sua inserção numa página web, na qual, através de links, se relaciona a explicação de inúmeros conceitos e exemplos, e constitui, portanto, uma ferramenta de trabalho que pretende ser o mais clara e didáctica possível, sem renunciar ao rigor académico. O mais recomendável é que a análise fotográfica seja apresentada em texto contínuo, num formato “literário” – se nos é permitida a expressão –, no qual se estabelecem continuamente as relações pertinentes entre os conceitos que aqui expusemos.
4.2 Interpretação global do texto fotográfico
A interpretação global do texto fotográfico, de carácter fundamentalmente subjectiva, como vimos, contempla a possibilidade de reconhecer a presença de oposições que se estabelecem no interior do enquadramento, a existência de significados para os quais podem remeter as formas, cores, texturas, iluminação, etc.; como se constrói a aspectualização e a focalização do texto fotográfico, através do exame da articulação do ponto de vista e dos modos de representação do espaço e do tempo; que tipos de relações e oposições intertextuais (relações com outros textos audiovisuais) se podem reconhecer, assim como uma valorização crítica da imagem (quando adequado).
Neste nível interpretativo é recomendável seguir o chamado “princípio da parcimónia”, que consiste na eleição da hipótese interpretativa mais simples entre as múltiplas que podem surgir, como proclamam alguns filósofos da ciência como Cohen ou Nagel. Diz-se que “uma hipótese é mais simples que outra se o número de tipos de elementos independentes é menor na primeira que na segunda” (Arnheim, 1979, p. 75). Trata-se de oferecer uma leitura crítica da imagem através de uma visão de totalidade , para o que deverá fazer-se uma síntese dos aspectos tratados mais relevantes, ainda que sob uma ou várias perspectivas que relacionem as diferentes hipóteses enunciadas durante a análise. Para isso, vamos expor muito brevemente alguns conceitos que podem surgir ao longo das análises de imagens fotográficas.
O primeiro refere-se aos conceitos de ambiguidade e auto-reflexividade, enquanto definidores do texto artístico, como foram expostos por Umberto Eco. A ambiguidade refere-se ao grau de abertura das significações so texto estudado, por oposição à univocidade de uma leitura. A auto-referencialidade remeteria para a capacidade da obra de arte em suscitar uma reflexão sobre a própria natureza do texto artístico, no nosso caso, da imagem fotográfica. Alguns estudiosos empregam a expressão “mise en abîme” para referir-se à presença, na própria imagem, de elementos que remetem à própria natureza representacional do texto visual. Também pode utilizar-se o termo metadiscursividade. O estudo do espaço, tempo e acções da representação, assim como a articulação do ponto de vista, são os itens da análise nos quais se terá detectado a presença destes traços estruturais que apontam para a “poética da obra aberta”.
Também temos feito referência à possibilidade de reconhecer algumas práticas significantes como enquadráveis nas categorias representação clássica versus representação barroca, como foram definidas por Wölfflin. Santos Zunzunegui (1988, pp. 170-172) aplica-as, de forma pertinente, à análise da fotografia de paisagem. A concepção clássica da representação fotográfica consistiria na existência de uma visão parcelar do mundo (pontualidade, fragmentação); apresentação da organização do mundo em planos diferenciados; simetria como peso estrutural; claridade absoluta (legibilidade do espaço, tempo e acção); e temporalidade descontinua (instantaneidade). A concepção barroca de uma representação fotográfica consistiria, pelo contrário, na existência de uma visão encadeada, entrelaçada do mundo; proeminência da profundidade na representação; formas com continuidade para lá do fora de campo fotográfico; prevalência da ideia de unidade absoluta; claridade relativa (Wölfflin dizia que “a revolução do barroco é a que permite pela primeira vez à luz estender-se pela paisagem em manchas livres”); e durabilidade temporal (continuidade, atemporalidade).
Seguindo a exposição de Zunzunegui, as imagens chamadas “barrocas” actualizam “programas narrativos que poderíamos designar de manutenção de estado (a natureza como Éden), enquanto as clássicas o fazem como programas de transformação (a anexação do território; a destruição do estado primogénito)” ao referir-se aos casos de estudo de fotografias de paisagem (p. 172).
Em algumas análises fotográficas pode-se encontrar a utilização do termo maneirismo para descrever determinados modos de representar. Trata-se, como afirma Hauser, de um conceito complexo no qual prevalece uma tensão entre elementos estilísticos antitéticos. Historicamente, o maneirismo é um estilo pictórico que surge nos finais do Renascimento, no qual se manifesta o artifício, a forma, a maneira, como sintomas de uma expressão intelectualizada e deformada que oculta, no fundo, um profundo drama (emotivo também) de desencontro e problematização com o externo e o interno. Alguns textos fotográficos poderiam ser descritos, pois, como maneiristas.
Omar Calabrese empregou o termo neobarroco para se referir à fractura da estabilidade da ordem clássica, presente em numerosas manifestações artísticas na pós-modernidade. O cânone clássico ver-se-ia perturbado por “categorizações de juízos que excitam vigorosamente o ordenamento do sistema, o desestabilizam por todos os lados e o submetem a turbulências e flutuações” (p. 45). Entre os traços que caracterizam a representação neobarroca podemos destacar: a estética da repetição e da variação (com respeito à ideia de ordem, originalidade e irrepetibilidade da estética idealista e das vanguardas); a colocação em crise do conceito de totalidade, isto é, a importância do detalhe ou fragmento; a revalorização das ideias de desordem e caos, tão habitual na cultura contemporânea (a beleza fractal, a estética do monstruoso ou a ideia da recepção acidentada por influência do zapping no consumo televisivo); a importância da imprecisão, do incompleto e errático na recepção estética; o predomínio do labiríntico como sintoma do gosto pelo enigma, pelo que se oculta ou pela leitura não linear dos textos artísticos; finalmente, a perversão que encerra uma leitura fragmentária e distorcida do texto.
A utilização da citação ou do pastiche na produção artística pode alcançar graus muito elevados, como em O Nome da Rosa, romance de Umberto Eco construído à base de citações de Adorno, Wittgenstein, São Tomás, Conan Doyle, etc., o que para Calabrese é uma operação neobarroca. Alguns destes traços podem ser identificados igualmente em textos fotográficos que se relacionam com a actual sensibilidade pós-moderna, muito ligada à ideia de neobarroco. A propósito da pós-modernidade, Umberto Eco assinalou que “não se trata de uma tendência que possa circunscrever-se cronologicamente, mas uma categoria espiritual, melhor dito, uma kunstwollen, uma maneira de fazer. Poderíamos dizer que cada época tem o seu próprio pós-modernismo, assim como cada época terá o seu próprio maneirismo”. E acrescenta pouco depois: “no entanto, chega um momento em que a vanguarda (o moderno) não pode ir mais além, porque produziu já uma metalinguagem que fala dos seus textos impossíveis (arte conceptual). A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que, uma vez que o passado não pode ser destruído – a sua destruição conduz ao silêncio – o que há a fazer é revisitá-lo: com ironia, com ingenuidade” (p. 72).
Não queremos finalizar a exposição da nossa metodologia de análise, sem esquecer que o prazer visual é um factor-chave na recepção das imagens. Caberia acrescentar que a própria actividade analítica não está isenta de prazer, já que entender (ou crer entender) o sentido oculto (ou sentidos ocultos) na mensagem fotográfica é uma actividade que também proporciona prazer. Um sentimento aprazível que parece ser causado pelo facto de se ter alcançado o êxito da empresa analítica. Concordamos com Roche quando assinala que, na hora de analisar uma fotografia, “a pergunta sem dúvida já não é «o que nos mostra uma foto?» nem «o que pode um filósofo fazer com uma foto?»… mas, mais propriamente, «com o que é que tem a ver uma fotografia, uma vez tirada?»” (p. 73). Uma pergunta que tentámos responder, o melhor que pudemos, com a proposta da presente metodologia de análise da imagem fotográfica.